quinta-feira, 12 de março de 2009

Casmurrices
Dry Neres

Esqueci-me de como se conjuga o verbo derramar. Especificamente o ato de derramar lágrimas. Não, não me derramo tem quase umas quatrocentas e trinta e seis horas e alguns segundos irrelevantes ininterruptos. Metade minha é maestrina e rege uma orquestra de duas coristas. Metade outra é instrumento e não rege ninguém. Só escuto, só sinto, não me alcanço, duvido dos meus passos. Percebo-me como alma escura e clara. Pedaço meu é tão sentimental, tão derretido. Pedaço outro é tão gelado; pedaço este é como cirurgião em atendimento descompromissado. Não tenho mais gosto suave em passear por meus cabelos, tocar minhas mãos, abraçar meu sorriso, porque se sorrio é por pura distração de espírito. Quisera conseguir intoxicar meu aparelho respiratório de maços de cigarro, goles largos e infinitos de qualquer substância embriagante. Mas não, isso não é feição do caráter meu. O que faço? Escrevo! Derramo minhas lamúrias, minhas dores em queimadura, minhas lágrimas 'letrificadas'. Percebo-me num estado de viagem a lugar nenhum, ao final do poço que eu quis cavar um dia. E as luzes se apagaram, não sei. Talvez olhos fechados apenas, talvez boca em exaspero e desespero de encontrar água potável em algum corpo que por ventura viesse a se cruzar com o meu. As literaturas continuam não me alimentando, porque questiono minha própria existência em brevidade voraz. Leio e não sugo o néctar meio amargo das palavras de Casmurro e meus dedos não viram as páginas em Allan Poe. Se ainda me alimento é talvez para suportar sentada a ausência de claridade em meus pensamentos-sentimentos-dúvidas. Não sou tão boa assim pra dizer que posso ir para o céu habitar com os seres de abundante luz, mas penso que também não sou tão dura e fria a ponto de me deixarem ser jogada aos recôncavos de gente sem lágrimas, ao que deram nome, inferno; porque se assim fosse, não me sentiria tocada pelos olhos, vários olhos que me questionam e me pedem uma atitude condizente com a idade que tenho. Tudo me olha, os móveis ao meu redor, os operários, tristes operários que atravessam a rua. Até as crianças que brincam de comer pizza em grupo me observam. O vento me invoca, os papéis se inverteram, até o motor do carro meu esbraveja em meus ouvidos reclamações acerca dos caminhos vários-muitos por onde me encarrego de nos levar. Eu reclamava da estaticidade, da falta de cor nos objetos, da tristeza aparente em algumas faces e minhas reclamações tão somente se reverteram em meu estado caótico atual. Estou por assim dizer, em estado de 'morrência' espiritual. Meu corpo vaga e caminha por aqui, como se procurasse por grama verde pra repousar, mas não encontra. Meu corpo tão jovem em idade cronológica vaga e caminha por aqui só em busca de uma canção de arpejo constante, mas não encontra e somente, tão somente cata notas mal projetadas. Eu sou então regida por forças estranhas que eu desconheço. Não sou a mesma, fato! Ninguém é... porque tudo muda. Mas é mais grave um tanto... Parece que minha essência, que antes tinha perfume de flor e gosto suave de maracujá tem se perdido por esses rastros que faço e volto e retomo e não me decido. Sou instável de mais, sou humana ao extremo. Tenho sido mais carne que espírito, fato! Tenho sido mais fraca que forte e mais nuvem que sol. Tenho feito lágrimas descerem escadas, e as observo em brevidade de vontade de mais lágrimas derramar, mas não consigo. Tenho alimentado sorrisos, mesmo sabendo que passageiros serão, porque no fundo, bem na caixa de pandora escondida que todos temos, sei que meu destino é vagar vagarosamente com meus versos empunhados e algum papel rasgado escondendo uma canção de despedida. E tenho me despedido de mim mesma todos os dias... Porque se assim posso me revelar, estou sumindo de mim, de todos, das fotos, das linhas, das casas, dos amores e serei em breve só rascunho e lembrança para os que me lembrarão como o 'Ser que escrevia de mãos trocadas e produzia linhas tortas'. Tenho medo que a palavra me mate, porque o ato de escrever e tocar letras é pura condenação.

Um comentário:

Poeta Mauro Rocha disse...

Não conjugues o verbo derramar se não para derramar palavras de amor ou lágrimas de felicidade, pois a vida é tão cheia de detalhes que se derramarmos lágrimas de dor podemos ficar secos, e como uma flor que precisa de cuidados, temos que nos cuidar. Belo texto.

BJS